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Teoria das formas ou da reminiscência de Platão

(Fonte Antologia Ilustrada de Filosofia pp. 65-68)

 

SÓCRATES - Então tens dúvida em aceitar que o que chamamos de aprendizado  seja uma reminiscência (recordação)?

 SIMIAS  Não é verdade que eu tenha propriamente dúvidas; sinto somente necessidade de experimentar eu mesmo o que estamos discutindo, ou seja, recordar-me... Agora, de bom grado ouviria como poderias demonstrá-lo.

 SÓCRATES Eis como: certamente concordamos que para recordar alguma coisa é preciso tê-la conhecido anteriormente.

SÍMIAS Sim.

SÓCRATES Concordamos também que se um conhecimento nos chega desse modo é reminiscência? E qual é esse modo? Se alguém vê, escuta ou percebe alguma coisa por meio de qualquer sensação, acontece que, além de tomar conhecimento dessa coisa, vem a sua mente uma outra (da qual o conhecimento não é o mesmo). Pois bem: não empregaríamos o termo no seu significado correto ao dizer, a respeito dessa outra coisa que lhe veio à mente, que esse alguém se recordou!

SÍMIAS  Como assim?

SÓCRATES  Por exemplo: admites que a noção de homem é diferente da noção de lira (pequena arpa)?

 SÍMIAS Sem dúvida.

SÓCRATES Pois bem: sabes que os enamorados, se vêem uma lira, um manto ou outro objeto qualquer de uso habitual do amado, no momento em que reconhecem a lira revêem na mente a figura do amado, a quem ela pertence? Isso é reminiscência.

Ora, esses exemplos não mostram que a reminiscência se dá de duas maneiras, pela via da semelhança ou pela via da dessemelhança? Sim. Mas quando alguém se recorda de alguma coisa pela via da semelhança não lhe acontece também pensar que o que despertou sua lembrança é ou não é, quanto à semelhança, de alguma forma a parte faltante em relação àquela que despertou a lembrança?

SÍMIAS Necessariamente.

SÓCRATES Vê se não é assim. Existe algo que afirmamos ser igual, não é verdade? E não quero dizer entre madeira e madeira, pedra e pedra ou outras coisas semelhantes; mas sim de uma coisa que está lá, é diferente de todas as outras, mas é igual em si (idéia perfeita). Deste igual em si, podemos afirmar que é alguma coisa ou não é nada?

SÍMIAS Sim, com certeza.

SÓCRATES E conhecemos também o que ela é em si mesma?

SÓCRATES E de onde obtivemos esse conhecimento? Não o obtivemos daqueles iguais de que falávamos agora, ou seja, das madeiras ou pedras ou outros objetos quaisquer, vendo que são iguais? Não fomos induzidos por esses iguais a pensar aque­le como igual, e que, no entanto, é diferente deles? Ou não te parece diferente? Consideres também esse aspecto. Pedras iguais e madeiras iguais, ainda que sejam as mesmas, não podem parecer, às vezes, iguais para um, e para outro não?

SÍMIAS Seguramente.

SÓCRATES Diz-me então: o igual em si pode eventualmen­te parecer desigual, ou seja, uma igualdade que se apresenta como desigualdade?

SÍMIAS E impossível, Sócrates.

SÓCRATES De fato, esses iguais e o igual em si não são a mesma coisa.

SÍMIAS Não são, com certeza, Sócrates.

SÓCRATES  E no entanto não é verdade que foi exatamente a partir dessas coisas iguais, mesmo se diferentes do igual em si, que pudestes chegar ao conhecimento desse último?

SÍMIAS É verdade.

SÓCRATES Como sendo uma coisa semelhante ou desseme­lhante daquelas, não é?

SÍMIAS Precisamente.

SÓCRATES   Porque isso não faz diferença. Basta que tu, tendo visto uma coisa, consigas, a partir daí, pensar em uma outra, semelhante ou dessemelhante: foi nesse ponto do pro­cesso que se produziu em ti uma reminiscência.

SÍMIAS Certamente.

SÓCRATES Diz-me agora, acontece conosco algo semelhan­te em relação àqueles iguais que observamos nas madeiras e nos outros objetos iguais de que falávamos há pouco? Eles nos parecem tão iguais como exatamente é o igual em si ou falta-lhes algo para ser tal e qual o igual ou não lhes falta nada?

SÍMIAS Faltam-lhes muitas coisas.

SÓCRATES [...] Alguém, tendo visto uma coisa, é levado a pensar: "Esta coisa que agora vejo tende a ser como uma ou­tra, exatamente como um daqueles seres que existem por si mesmos, e todavia não consegue se conformar àquela por al­gumas imperfeições, não sendo portanto igual àquela, e sim inferior". Pois bem: concordamos que quem pensa assim de­ve ter formado antes, de alguma maneira, uma ideia daquele ser ao qual a coisa vista se parece, mas que, em comparação, se revela defeituosa?

SÍMIAS Necessariamente.

SÓCRATES E então, dize-me: aconteceu ou não também co­nosco algo semelhante em relação aos iguais e ao igual em si?

SÍMIAS  Com certeza.

SÓCRATES  Portanto, necessariamente, devemos ter formado antes uma ideia do igual; ou seja, antes daquele momento em que, vendo pela primeira vez os iguais, pudemos pensar que todos eles aspiram a ser como o igual, mas continuam in­feriores a ele.

SÍMIAS É exatamente isso.

SÓCRATES E logo estamos de acordo também quanto a es­se outro ponto: nada mais pudemos formar a partir desse pen­samento nem é possível que se forme, a não ser que vejamos ou toquemos ou tenhamos qualquer outra sensação; porque todas para mim valem agora o mesmo.

SÍMIAS Valem o mesmo em relação àquilo que agora quere­mos demonstrar.

SÓCRATES Mas, naturalmente, exatamente a partir dessas sensações deve-se formar em nós a ideia de que todos os iguais percebidos por essas sensações aspiram a ser aquilo que o igual é em si e ao qual todavia permanecem inferiores. Como seria possível dizer de outra forma?

SÍMIAS Assim mesmo.

SÓCRATES E, portanto, antes que começássemos a ver e a ouvir - enfim, a usar os nossos sentidos -, era preciso que já estivéssemos de posse do conhecimento do igual em si, do que ele é, para que pudéssemos compará-lo aos iguais resultantes de sensações; e pensar que todos estes anseiam ser como ele, quando no entanto permanecem inferiores...

Portanto, se é verdade que adquirimos esse conhecimento antes de nascer e o carregamos conosco ao nascer, isso quer dizer que antes de nascer e logo depois de nascidos já conhe­cíamos não somente o igual - o maior e o menor - mas tam­bém todas as outras ideias; porque não é sobre o igual que es­tamos agora raciocinando, mas também sobre o belo em si e o bom em si, e sobre o justo e sobre o santo, em suma, como eu dizia, sobre tudo aquilo em que, em nosso discursar, seja per­guntando, seja respondendo, colocamos esse selo, que é o "em si". Disso resulta necessariamente que devemos ter tido co­nhecimento de todas essas ideias antes de nascer.

SÍMIAS Correto.

SÓCRATES E resulta também (exceto se, uma vez de posse desses conhecimentos, não os encontremos depois, em nosso sucessivo renascer, na condição de tê-los esquecido) que nesse nosso perene renascer (VIDA TERRENA) nunca deixamos de saber e conservamos esse saber por toda a vida (ETERNIDADE). Porque o saber é isso: adquirido um conhecimento, conservá-lo, e não esquecê-lo. Não é isso, ó Símias, que chamamos esquecimento, a perda de conhecimento?

SÍMIAS É exatamente isso.

SÓCRATES Mas se, ao contrário, adquiridos esses conhe­cimentos antes de nascer, nós os perdemos nascendo e, de­pois, valendo-nos dos sentidos relativos a certos objetos, va­mos recuperando de cada um deles aqueles conhecimentos que tínhamos anteriormente, então isso que nós chamamos aprender não seria recuperar conhecimentos que já nos per­tenceram? E se empregarmos para isso o termo recordar-se, não o empregaremos no seu correto significado?

SÍMIAS Certamente.

SÓCRATES De fato, já se demonstrou ser possível que al­guém, experimentando uma sensação em relação a alguma coisa ao vê-la, ouvi-la ou percebê-la de alguma forma, con­siga lembrar-se de uma outra coisa da qual se esquecera, e que se avizinha à outra por semelhança ou também por des­semelhança. De modo que, como eu dizia, das duas uma: ou todos nós já nascemos co­nhecendo essas ideias e conservamos esse co­nhecimento por toda a vida ou então aqueles que nós dizemos que aprendem apenas re­cordam, e essa apren­dizagem é exatamente reminiscência.

 

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