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Meditação Primeira

(Fonte Antologia Ilustrada de Filosofia pp. 225-225 e 228-229)

 

 

Das Coisas que se Podem Colocar em Dúvida

1. Já há algum tempo me dei conta de que, desde os meus primeiros anos de vida, aceitei como verdadeira uma quantidade de falsos conceitos, e o que construí depois sobre princípios tão inseguros só poderia ser muito duvidoso e incerto; de modo que se fazia necessário que eu decidisse seriamente me desfazer de todas as opiniões recebidas até então e recomeçar a partir dos alicerces, se quisesse instituir algo de sólido e permanente nas ciências...

 

2. Agora que meu espírito está livre de todos os cuidados, e que consegui um repouso assegurado numa pacífica solidão, aplicarei seriamente e com liberdade em destruir todas as minhas antigas opiniões em geral. Ora, não será necessário, para alcançar esse desígnio, provar que todas elas são falsas, o que talvez nunca conseguiria; mas, uma vez que a razão já me convence de que posso dar algum crédito às coisas que não são inteiramente certas e indubitáveis, do que às que nos parecem manifestamente ser falsas, o menor motivo de dúvida que eu nelas encontrar bastará para me levar a rejeitar todas.

E, para isso, não é necessário que examine cada uma em particular, o que seria um trabalho infinito; mas, visto que a ruína dos alicerces carrega necessariamente consigo todo o resto do edifício, dedicar-me-ei inicialmente aos princípios sobre os quais todas as minhas antigas opiniões estavam apoiadas.

 

3. Tudo quanto tenho tomado até agora como o mais verdadeiro e seguro conhecimento aprendi por meio dos sentidos; ora, algumas vezes descobri que esses sentidos eram ilusórios, sendo prudente jamais confiar inteiramente naqueles que já nos enganaram uma vez.

 

.4. Mas, mesmo se os sentidos algumas vezes nos enganam em relação a coisas muito pequenas ou muito distantes, talvez existam muitas outras coisas das quais não se possa racionalmente duvidar, mesmo se as conhecemos por meio deles: por exemplo, que estou aqui, sentado junto ao fogo, vestindo um robe, segurando nas mãos este papel; e outras coisas dessa natureza.

E como eu poderia negar que estas mãos e este corpo são meus? A não ser, talvez, igualando-me àqueles insensatos, cujos cérebros são tão perturbados e ofuscados pelos negros vapores da bílis, que afirmam continuamente serem reis, quando são apenas pedintes; ou estarem vestidos de ouro e púrpura, quando na verdade estão nus; ou imaginam ser jarros e ter um corpo de vidro. Mas esses são loucos; e eu não o seria menos, se me baseasse no seu exemplo.

 

5. Todavia, devo considerar aqui que sou homem e, consequentemente, tenho o hábito de dormir e de imaginar em sonhos as mesmas coisas, e às vezes outras ainda menos verossímeis, que aqueles insensatos, quando estão despertos. Quantas vezes, à noite, não terei sonhado que estava neste lugar, vestido, junto ao fogo, quando na realidade estava despido em minha cama?

É verdade que agora me parece não estarem adormecidos os olhos que contemplam este papel, que esta cabeça que mexo não está entorpecida, que consciente e deliberadamente eu sinto que estendo esta mão: o que acontece no sonho certamente não parece tão claro e nítido quanto tudo isso.

Mas, pensando melhor, lembro-me de ter sido muitas vezes enganado, enquanto dormia, por essas ilusões. E fixando-me nesse pensamento, vejo tão claramente que não existem indícios conclusivos nem sinais suficientemente seguros pelos quais seja possível distinguir nitidamente a vigília do sono que me espanto; e esse espanto é tamanho que é capaz de me persuadir de que estou dormindo.

 

6. Assim, suponhamos agora que estamos adormecidos e que todas essas particularidades - ou seja, abrir os olhos, mexer a cabeça, estender as mãos, e outras semelhantes - sejam apenas falsas ilusões; e pensemos que talvez as nossas mãos e todo o nosso corpo não sejam tais como nós os vemos. Todavia, é preciso ao menos admitir que as coisas representadas em sonho são como quadros e pinturas, que só podem ser formadas por semelhança com alguma coisa real, verdadeira; de modo que ao menos essas coisas genéricas, ou seja, olhos, cabeça, mãos, e todo o resto do corpo, não são imaginárias, mas existem verdadeiramente.

E, para dizer a verdade, os próprios pintores, mesmo quando usam todos os artifícios para representar sereias e sátiros com formas bizarras e extraordinárias, não podem todavia atribuir-lhes formas e naturezas totalmente novas, e o que fazem é somente misturar e compor os membros de diversos animais; ou, então, se porventura a sua imaginação não é capaz de inventar algo tão novo, que nunca tenhamos visto nada semelhante, de modo que a sua obra nos mostre uma coisa puramente e absolutamente falsa, ao menos as cores que usam devem ser verdadeiras.

 

7. E pelo mesmo motivo, mesmo sendo imaginárias essas coisas genéricas, tais como olhos, cabeça, mãos e outras semelhantes, é preciso confessar que de qualquer maneira existem coisas ainda mais simples e universais que são verdadeiras e existentes; de cuja mistura, nem mais nem menos de algumas cores verdadeiras, são formadas todas essas imagens das coisas, que residem em nosso pensamento, quer verdadeiras e reais, quer falsas e fantásticas.

Desse género de coisas é a natureza corpórea em geral e a sua extensão; assim como a figura das coisas extensas, a sua quantidade ou grandeza, o seu número; e também o lugar em que estão, o tempo que mede a sua duração, e coisas semelhantes.

 

8. Talvez por isso não seja errado concluir que a física, a astronomia, a medicina e todas as outras ciências que dependem da consideração de coisas compostas são muito duvidosas e incertas. Mas que a aritmética, a geometria e outras ciências desse tipo - que tratam somente de coisas simples e gerais, sem se preocupar muito se existem ou não na natureza - contêm algo de seguro e de indubitável.

Porque, esteja eu desperto ou dormindo, dois mais três serão sempre cinco, e o quadrado não terá mais do que quatro lados; não parece possível que verdades tão evidentes possam ser suspeitas de qualquer falsidade ou incerteza.

 

9. Todavia, faz muito tempo que guardo em meu espírito uma certa opinião, segundo a qual existe um Deus que tudo pode, por quem fui criado e feito, assim como sou. Ora, quem pode me assegurar que esse Deus não tenha feito de modo que não exista nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo extenso, nenhuma figura, nenhuma grandeza, nenhum lugar, e que todavia eu tenha a impressão de que todas essas coisas existem do mesmo modo como as vejo?

E mais ainda, assim como eu penso às vezes que os outros se enganam até nas coisas que acreditam saber com a maior certeza, pode ser que Ele tenha querido que eu me enganasse sempre que somo dois e três, ou quando enumero os lados do quadrado, ou quando considero coisas algo ainda mais fáceis do que essas, se é que se pode imaginá-las.

Mas talvez Deus não tenha desejado que eu fosse enganado desse modo, porque dele se diz que é suprema bondade. Todavia, se é contra a sua bondade ter me feito tal que eu me engane sempre, parece ser contra a sua vontade permitir que eu me engane alguma vez; e isso eu não posso duvidar que ele o permita.

 

10. Haverá talvez aqui pessoas que preferirão negar a existência de um Deus tão poderoso a acreditar que todas as outras coisas são incertas. Mas não lhes resistamos no momento e suponhamos, em favor delas, que tudo quanto aqui é dito de um Deus seja uma fábula. Todavia, de qualquer maneira que suponham ter eu chegado ao estado e ao ser que possuo, quer o atribuam a algum destino ou fatalidade, quer o refiram ao acaso, quer queiram que isto ocorra por uma contínua série e conexão das coisas, é certo que, já que falhar e enganar-se é uma espécie de imperfeição, quanto menos poderoso for o autor a que atribuírem minha origem tanto mais será provável que eu seja de tal modo imperfeito que me engane sempre. Razões às quais nada tenho a responder, mas sou obrigado a confessar que, de todas as opiniões que recebi outrora em minha crença como verdadeiras, não há nenhuma da qual não possa duvidar atualmente, não por alguma inconsideração ou leviandade, mas por razões muito fortes e maduramente consideradas: de sorte que é necessário que interrompa e suspenda doravante meu juízo sobre tais pensamentos, e que não mais lhes dê crédito, como faria com as coisas que me parecem evidentemente falsas, se desejo encontrar algo de constante e de seguro nas ciências.

 

11. Mas não basta ter feito essas observações, é preciso que eu trate também de lembrá-las; porque aquelas opiniões antigas e comuns ainda voltam com frequência à minha lembrança, posto que o uso longo e familiar que fiz delas lhes dá o direito de ocupar o meu espírito contra a minha vontade e de se tornar quase donas da minha crença.

E eu nunca me desacostumarei de aceitá-las e de confiar nelas, enquanto as considerar como de fato são, ou seja, de algum modo dúbias, como já mostrei, mas probabilíssimas, de maneira que temos muito mais motivos para acreditar nelas do que para negá-las.

Eis porque penso fazer delas um uso mais prudente se, seguindo um procedimento contrário, puser todo o meu empenho em enganar a mim mesmo, fingindo que todos esses pensamentos são falsos e imaginários; até que, tendo a tal ponto equilibrado os meus preconceitos, eles não possam inclinar a minha opinião mais para um lado do que para o outro, e o meu juízo não seja mais dominado por maus costumes e desviado do reto caminho que pode levá-lo ao conhecimento da verdade...

Pois estou seguro de que não pode existir perigo nem erro nesse caminho, e que não é demais a minha desconfiança, posto que agora não se trata de agir, mas apenas de meditar e conhecer.

 

12. Logo suporei que existe não um verdadeiro Deus, que é fonte soberana de verdade, mas um

certo génio mau, não menos astuto e enganador que poderoso, que tenha empregado todo o seu engenho em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos não sejam mais que ilusões e enganos de que ele se serve para surpreender a minha credulidade.

Permanecerei obstinadamente preso a esse pensamento; e se por tal meio não estiver em meu poder alcançar o conhecimento de qualquer verdade, ao menos estará em meu poder suspender o meu juízo. Eis porque procurarei cuidadosamente não aceitar qualquer falsidade, e prepararei tão bem o meu espírito contra as astúcias desse grande enganador que, por mais poderoso e astuto que seja, jamais poderá me impor coisa alguma.

 

13. Mas tal desígnio é penoso e laborioso, e uma certa preguiça devolve-me insensivelmente ao curso da minha vida ordinária.

E do mesmo modo que um escravo que goza de uma liberdade imaginária e que, ao começar a suspeitar que a sua liberdade não é mais do que um sonho, teme despertar e conspira a favor daquelas agradáveis ilusões para ser enganado mais longamente, eu volto a cair nas minhas antigas opiniões e tenho medo de despertar desse torpor, por medo de que as vigílias laboriosas que sucederiam a tranquilidade desse descanso, em vez de me trazerem luz e esclarecimento para o conhecimento da verdade, sejam insuficientes para iluminar as trevas das dificuldades que acabo de apresentar.

 

Meditação Segunda

(Fonte Antologia Ilustrada de Filosofia)

 

Da Natureza do Espírito Humano; e de como Ele é Mais Fácil de Conhecer do que o Corpo

1. A Meditação que fiz ontem encheu-me o espírito de tantas dúvidas, que doravante não está mais em meu alcance esquecê-las. E, no entanto, não vejo de que maneira poderia resolvê-las; e, como se de súbito tivesse caído em águas muito profundas, estou de tal modo surpreso que não posso nem firmar meus pés no fundo, nem nadar para me manter à tona. Esforçar-me-ei, não obstante, e seguirei novamente  a  mesma  via  que  trilhei  ontem,  afastando-me  de  tudo  em  que  poderia imaginar a menor dúvida, da mesma maneira como se eu soubesse que isto fosse absolutamente falso; e continuarei sempre nesse caminho até que tenha encontrado algo de certo, ou, pelo menos, se outra coisa não me for possível, até que tenha aprendido certamente que não há nada no mundo de certo.

 

2. Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outra parte, não pedia nada mais exceto um ponto que fosse fixo e seguro. Assim, terei o direito de conceber altas esperanças, se for bastante feliz para encontrar somente uma coisa que seja certa e indubitável.

 

3. Suponho, portanto, que todas as coisas que vejo são falsas; persuado-me de que jamais existiu de tudo quanto minha memória referta de mentiras me representa; penso não possuir nenhum sentido; creio que o corpo, a figura, a extensão, o movimento e o lugar são apenas ficções de meu espírito. O que poderá, pois, ser considerado verdadeiro? Talvez nenhuma outra coisa a não ser que nada há no mundo de certo.

 

4. Mas que sei eu, se não há nenhuma outra coisa diferente das que acabo de julgar incertas, da qual não se possa ter a menor dúvida? Não haverá algum Deus, ou alguma outra potência, que me ponha no espírito tais pensamentos? Isso não é necessário; pois talvez seja eu capaz de produzi-los por mim mesmo. Eu então, pelo menos, não serei alguma coisa? Mas já neguei que tivesse qualquer sentido ou qualquer corpo. Hesito, no entanto, pois que se segue daí? Serei de tal modo dependente do corpo e dos sentidos que não possa existir sem eles? Mas eu me persuadi de que nada existia no mundo, que não havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, nem corpos alguns: não me persuadi também, portanto, de que eu não existia? Certamente não, eu existia sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou, apenas, pensei alguma coisa. Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso que emprega toda a sua indústria em enganar-me sempre. Não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa.

De modo que, depois de muito pensar a respeito, e de ter cuidadosamente tudo examinado, é preciso afinal concluir, e confirmar, que a proposição Eu sou, eu existo é necessariamente verdadeira todas as vezes que eu a pronuncio ou a concebo no meu espírito.

 

5. Mas eu ainda não conheço de maneira suficientemente clara aquilo que sou, eu que estou certo de ser; de modo que, agora, é preciso que eu tenha o máximo cuidado para não tomar imprudentemente por mim uma outra coisa qualquer, e assim me enganar nesse conhecimento que eu sustento ser mais certo e evidente do que todos aqueles que tive anteriormente.

Mas não conheço ainda bastante claramente o que sou, eu que estou certo de que sou; de sorte que  doravante  é  preciso  que  eu  atente com  todo  cuidado,  para  não  tomar  imprudentemente alguma outra coisa por mim, e assim para não equivocar-me neste conhecimento que afirmo ser mais certo e mais evidente do que todos os que tive até agora.

 

6. Eis porque examinarei novamente aquilo que eu acreditava existir antes de entrar nesses dois últimos pensamentos; e, das minhas antigas opiniões, eliminarei tudo quanto pode ser refutado pelas razões por mim acima alegadas, de modo que reste apenas aquilo que é completamente indubitável...

Eu me via como tendo um rosto, mãos, braços, toda esta máquina composta de ossos e de carne, tal como aparece em um cadáver: máquina que eu designava pelo nome de corpo.

Além disso, eu notava que me alimentava, andava, sentia e pensava, e atribuía todas essas ações à alma; mas não me detinha em pensar o que fosse essa alma, ou, se o fizesse, imaginava que fosse algo muito esparso e sutil, como um vento, uma chama, ou um vento delicadíssimo que se insinuava e difundia nas partes mais grosseiras do meu ser.

No tocante ao corpo, não duvidava absolutamente da sua natureza, porque pensava conhecê-lo muito distintamente e, se quisesse explicá-lo segundo as noções que eu possuía, o teria descrito desta maneira: por corpo entendo tudo o que pode ser delimitado por uma figura; que pode estar situado em qualquer lugar e preencher um espaço de modo tal que exclua qualquer outro corpo; que pode ser sentido pelo tato, pela vista, pela audição, pelo paladar, pelo olfato; que pode ser movido de muitas maneiras, não por si mesmo, mas por algo que lhe é estranho, pelo qual seja tocado e cuja impressão receba.

 

7. Mas eu, o que sou eu, quando suponho existir alguém extremamente poderoso e, se ouso dizer, malicioso e astuto, que recorre a todas as suas forças e a toda sua habilidade para me enganar? Posso ter certeza de possuir o menor dos atributos que conferi acima à natureza corpórea? Eu me detenho a pensar nisso atentamente, percorro e torno a percorrer todas essas coisas do meu espírito, e não encontro nenhuma que eu possa dizer estar em mim. Não é preciso que me demore a enumerá-las.

Passemos, pois, aos atributos da alma e vejamos se alguns deles residem em mim. Os primeiros são nutrir-me e andar; mas se é verdade que eu não tenho corpo, também é verdade que não posso andar nem me alimentar.

Um outro atributo é sentir; mas, igualmente, não se pode sentir sem o corpo; sem contar que acreditei ter sentido muitas coisas durante o sono e ao despertar dei-me conta de não tê-las sentido realmente.

Um outro é pensar; e aqui constato que o pensamento é um atributo que me pertence, sendo o único que não pode separar-se de mim. Eu sou, eu existo: isto é certo; mas por quanto tempo? Na verdade, por todo o tempo em que eu estiver pensando; posto que talvez ocorresse, se parasse de pensar, que eu parasse ao mesmo tempo de ser e de existir.

Não admito agora nada que não seja necessariamente verdadeiro: logo, falando claramente, eu não sou mais que uma coisa que pensa, ou seja, um espírito, um intelecto ou uma razão, termos estes cujo significado me era antes desconhecido.

Sou, então, uma coisa verdadeira, e verdadeiramente existente; mas que coisa é esta? Eu já disse: uma coisa que pensa. E que mais? Estimularei ainda mais a minha imaginação para investigar se não sou algo mais. Eu não sou esta reunião de membros que se chama corpo humano; eu não sou um vento brando e penetrante, difundido por todos esses membros; eu não sou um vento, um sopro, um vapor, e nada de tudo quanto possa fingir e imaginar, posto que supus que tudo isso é nada; e, no entanto, sem mudar essa suposição, eu continuo certo de que sou alguma coisa.

 

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